O Herói e a sua Saga pela Cidade:
Olhares sobre Angola no Cinema de Zezé Gamboa
 
 

 

Ana Lidia Afonso1

Diferentemente da história do cinema que conta com mais de um século de existência, o advento da cinematografia em Angola é muito recente. Só em fins da década de 1960 registram-se as primeiras produções cinematográficas com ideais semelhantes aos do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Antes, o que havia era um cinema em Angola produzido por um olhar colonial que estava a serviço do império português.

Nos anos 1960, os documentários eram a via de saída para dar conta de um período em que os angolanos não dominavam as técnicas cinematográficas e precisavam contar com ajudas externas.

A partir dos anos de 1970 o cinema angolano toma novos rumos, passando a servir de testemunho etnográfico de diferentes lugares do país. Agregadas a isso, surgem obras que, segundo Paula Cruz (2012), “buscavam sublinhar a incompreensão da sociedade africana por parte dos portugueses”.

Para Cruz, os anos de 1977/1978 foram os mais produtivos, tendo como carro-chefe os documentários de Ruy Duarte de Carvalho. Entre os anos de 1982 e 1985 houve um recuo nas produções de filmes, tendência que a autora acredita ter sido reflexo do surgimento da televisão em Angola. Nos anos 1990 surge a segunda geração de cineastas angolanos. A diferença dessa geração em relação à anterior é que os novos profissionais tinham maior liberdade temática.

Pertencente a essa fase da cinematografia angolana, Zezé Gamboa – cineasta e engenheiro de som que nasceu em Luanda em 31 de outubro de 1955 –, lança em 2004, O herói, filme exibido em vários festivais internacionais, ganhou prêmios e projetou a sua carreira.

A película surge dois anos depois de um longo período de guerra civil entre UNITA e o MPLA. Disputas que objetivavam o alcance do poder de governar o país. A narrativa fílmica conta a história de Vitório, um soldado com 35 anos que volta para Luanda mutilado de guerra por ter pisado em uma mina. Vitório é representado como um herói que segue sua trajetória até o momento em que deve retornar a seu mundo comum. Regressando ao convívio com a sociedade, ele espera por um prestígio que não consegue alcançar.

Ao eleger Luanda como lugar para contar a história, Zezé Gamboa se insere no rol dos artistas que tem a cidade como objeto, dando ênfase aos fenômenos e paisagens urbanas. No caso de O herói a cidade emerge como espaço capaz de unir e separar os homens, em conformidade com Milton Santos ao afirmar que com o crescimento das forças produtivas e a divisão do trabalho, o espaço é forjado para aumentar as diferenças de classe. Na medida em que a cidade cresce as desigualdades sociais se multiplicam e “a proximidade física não elimina o distanciamento social, nem tampouco facilita os contatos humanos não-funcionais” (SANTOS, 2012, p. 33).

É nesse contexto marcado pela desigualdade, mutilado, sem teto, sem emprego, sem família, sem conseguir constituir-se como cidadão que Vitório segue sua saga pela cidade, que se inicia com a luta para conseguir uma prótese, desdobrando-se em várias situações que o faz interagir com personagens que representam diversos tipos sociais que compõem a cena urbana, levando o leitor a refletir sobre as mazelas da sociedade angolana no contexto pós-guerra.

O olhar por trás da câmera tem o poder de potencializar as imagens, pois as sequências que compõem o todo não são selecionadas aleatoriamente. Elas surgem de um processo de escolha que Walter Benjamin denomina de perfectibilidade – característica atribuída à arte na era da reprodutibilidade técnica, que não se configura mais como algo que busque um valor de eternidade, mas, em contrapartida, passa a ter função política:

O filme acabado não é produzido de um só jato, e sim montado a partir de inúmeras imagens isoladas e de sequências de imagens entre as quais o montador exerce seu direito de escolha – imagens, aliás, que poderiam desde o início da filmagem, ter sido corrigidas, sem qualquer restrição. (BENJAMIM, 1994, p. 175)

Se atentarmos para o fato de que a composição das sequências cinematográficas parte de um critério subjetivo, que o montador exerce seu poder de escolha, como afirma Benjamim, pode-se perceber que desde as primeiras imagens fílmicas a visão delineada é de uma Angola complexa e que se configura como espaço social desigual. Nessa perspectiva, a narrativa fílmica reflete a sociedade angolana, servido de instrumento de denúncia do poder político do país, de acordo com Rudi Rebelo (2014).

A sequência inicial apresenta as imagens num plano geral que começa com um movimento horizontal da câmera alta que vai fazendo um panorama da cidade, partindo das áreas mais pobres de Luanda. Quanto mais se aproxima do centro urbano, mais baixa a câmera fica, mas ainda assim deixa a sensação de que as cenas são registradas de cima para baixo. Ao distanciar a câmera nas regiões carentes o observador estimula o espectador a exercitar a imaginação para que os significados escamoteados nas imagens não escapem a sua apreciação, conforme afirma Marcel Martin (2005).

Infere-se no trabalho de decifração que o afastamento do foco pode ser entendido como mecanismo para ressaltar o desinteresse dos governantes em relação àquelas áreas, pois algumas sequências do filme mostram a ausência de políticas públicas para atender as demandas da população no que concerne à educação, saúde, saneamento básico, etc. Outro sentido possível para a pouca proximidade da câmera pode ser atribuído ao processo de escolha do observador, estratégia de não se deter muito na paisagem na tentativa de camuflar o cenário distópico.

Em seguida, os meninos jogando basquete surgem como primeiro índice de possibilidade de futuro. Mas qual seria a perspectiva para o porvir, se o personagem Manu, ao se machucar no jogo, decide parar e observar a cidade do alto, mas sua visão esbarra na impossibilidade de ir além? Enquadrando o menino de costas, a câmera se movimenta num panorama horizontal até que Manu desapareça e o olhar fixe uma paisagem que vai além do alcance da personagem.

Essas sequências são fundamentais porque marcam bem que as fronteiras existentes entre o asfalto e as ruas de terra batida não foram totalmente diluídas. Embora Luanda não apresente uma configuração dicotômica conforme ocorria no período colonial, cidade dividida entre asfalto e musseques, ainda assim o espaço urbano não se configura como lugar plenamente democrático. Os angolanos podem circular livremente pela cidade, mas nota-se que poucos são os momentos em que as relações humanas se estabelecem além do plano meramente funcional, retomando as ideias de Milton Santos (2012). A caminhada solitária que a personagem Vitório empreende em boa parte do filme é o principal exemplo do distanciamento e da falta de interação entre os indivíduos.

Somente depois das cenas iniciais aparece a sequência em que Vitório chega ao hospital para reivindicar sua prótese. Apresentando-se como herói de guerra ele começa sua luta para tentar se recolocar na sociedade, peregrinação que só começa a ter fim quando conhece Judith, Manu, Joana e Flora.

Em Judith encontra sua outra metade. Mulher castigada pela vida, ela sofre pela perda do filho e encontra na prostituição a opção para conseguir seu sustento. Vivendo a margem da sociedade e os dilemas de quem necessita “mercadejar o corpo”, palavras de Tania Macêdo (2008), apesar dos pesares, ela ainda tem esperança e vê em Vitório a possibilidade de vislumbrar um futuro. A construção dessa personagem aproxima-se das características que as prostitutas adquirem na prosa angolana – “guardando uma grande dose de bondade, as meretrizes da prosa angolana, assemelham-se às personagens do neo-realismo português, em seus sonhos de integrarem uma vida longe da prostituição” (MACÊDO, 2008, p. 132). Judith deixa tudo para traz, volta a usar o nome de batismo – Maria Bárbara, e investe em uma nova vida com Vitório. Ela é a única pessoa que, de certa forma, trata ele com respeito e dignidade.

Manu, responsável por trazer de volta a parte do corpo de Vitório que faltava, apresenta um perfil que agrega marcas de uma criança que tem uma infância conturbada. Sentindo a ausência do pai, parece não ter perspectivas para o amanhã. Em suas vivências cotidianas, transita entre as brincadeiras, jogos infantis e os momentos que incorpora as marcas do menino marginal, parecidas com as descritas por Macêdo, que destaca que, a partir dos anos 80, talvez como resultado de um contexto desfavorável para sonhar, parte da literatura angolana passa a retratar os meninos de rua como crianças agressivas e desligadas de suas famílias.

Ainda que não possamos nos referir a Manu como uma criança violenta, ele começa a dar sinais de que pode seguir esse caminho. Além de começar a realizar pequenos furtos, por duas vezes demonstra interesse por armas quando vai fazer a troca de seus roubos em um ferro velho: da primeira, rouba um fação; na segunda, quer uma arma de fogo, mas é convencido pelo dono do estabelecimento de que a melhor lembrança que ele pode levar da guerra é uma prótese. Com a avó Flora, ele simula a construção de um núcleo familiar com Vitório e Bárbara, deixando ao espectador a possibilidade de vislumbrar outros rumos para o menino longe da marginalidade.

Joana, professora que acredita na educação como caminho para um futuro melhor e alimenta sonhos idealistas de uma Angola mais justa, fará a ponte para Vitório alcançar o estatuto de cidadão. Ela é a única personagem que estando em uma posição confortável consegue interagir com as personagens das classes desfavorecidas, relacionando-se com eles de maneira não-funcional, lembrando mais uma vez as palavras de Milton Santos.

A construção da personagem Vitório, um Sargento condecorado com uma medalha de herói de guerra, mas que mal consegue um emprego de motorista, esvazia totalmente o sentido de herói clássico, idealizado como forte, belo, dotado de poderes sobrenaturais.

Numa primeira leitura, podemos dizer que ele representa, alegoricamente, a sociedade angolana, que, pela impossibilidade, pela falta de um membro de seu corpo, caminha com dificuldade. Nesse sentido a desconstrução da figura do herói pode ser entendida como uma marca da distopia. Problematizar o significado que o herói adquire no filme associando o personagem metaforicamente ao contexto atual do país impõe-nos pensar em como se dá o processo de representação do real no filme.

Na esteira das reflexões de Ismael Xavier acerca da representação da realidade, pode-se afirmar que O herói apresenta alguns traços do realismo crítico composto por

um universo ficcional apto a colocar os fatos narrados em perspectiva e capaz de organizar suas relações de modo a que se produza um efeito específico: a imagem e o som não se combinam com o objetivo de mostrar algo, mas com o objetivo de significar algo. (XAVIER, 1984, p. 54)

A possibilidade de perspectivar a narrativa fílmica permite entrever que por trás da representação de um cenário antiutópico é possível observar que, em vários momentos, surgem discursos otimistas que apostam no porvir. Um dos momentos em que isso ocorre é quando o personagem Vitório recebe a prótese do médico, Dr. Luiz, que diz que ele vai ter que aprender a andar outra vez, como se fosse uma criança. Também diz que ele vai poder começar uma nova vida e que é preciso ter coragem para conseguir se inserir novamente na sociedade. Convém destacar que as crianças simbolizam o futuro. Tornar-se criança novamente, aprendendo a caminhar é um dos indícios que evidenciam que no filme O herói há uma preocupação com o amanhã.

Ao discorrer sobre o filme, destacando como o roteiro trabalha com a ideia de reconstrução do corpo político de Angola, Mark Sabine (2012) apresenta várias leituras alegóricas possíveis na película que permitem identificar que existe um projeto para recuperar a nacionalidade. Um desses símbolos é o da reintegração da família como sinédoque da reestruturação da nação. Mas é na figura do herói Vitório, em seu corpo mutilado e reconstruído, que é possível estabelecer a leitura alegórica de Angola.

A ideia de restauração do corpo como reconstrução da nação fica bem evidente no discurso do Ministro na rádio ao fazer o apelo para que devolvam a prótese de Vitório – “Angolanos, é tempo de reconciliarmos uns com os outros. É tempo de nos reconciliarmos com o passado. Agora temos a chance de viver em paz para que Angola seja um país próspero e grande... Que viva Vitório! Que viva Angola!” (GAMBOA, 2004).

Nesse e em outros momentos do filme notamos que, mesmo que a paisagem representada seja desfavorável e aparente apartar qualquer possibilidade de futuro, ainda é possível alçar novos voos. Chegar até a orla, lugar que Manu observa de longe nas sequências iniciais do filme, só será possível no final da história, quando Vitório e Manu seguem de carro à beira-mar. Cenas que indicam que as personagens ganham um pouco de dignidade e têm perspectivas de seguirem em frente.

É apostando nessa crença que o roteirista investe num encerramento que se constitui como devir. A escolha do Poema do semba, de Paulo Flores, faixa musical gravada em 1999 no álbum “Recompasso”, como trilha sonora para embalar o trajeto das personagens nas últimas sequências, convida mais uma vez o espectador a exercitar a imaginação – “O semba, semba é meu choro dolente / olha nossa vida de frente / semba é suor, semba é gente... a voz do meu semba / a voz do meu semba urbano / e a voz que me faz suportar / O orgulho em ser angolano”.

A música de Flores, veiculada pela mídia três anos antes do fim da guerra civil, sintetiza o percurso realizado por Zezé Gamboa ao longo da película. Ao registrar imagens que impõem ao leitor enxergar a sociedade angolana em sua complexidade, o olhar sensível e atento por trás da câmera dialoga com a proposta da letra do semba: convocar os angolanos, a olhar a vida de frente, a aprender com os ensinamentos dessa escola-vida, a ter orgulho da nação e a não perder a esperança.

 

Referências

 

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

 

CRUZ, Paula Faccini de Bastos. Caminhos do cinema angolano: uma análise crítica das principais obras sobre produção cinematográfica de Angola. Anais do XV Encontro Regional de História da ANPUN-Rio. Rio de Janeiro: FFP/UERJ, 2012.

 

MACÊDO, Tania. Luanda, cidade e literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2008.

 

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Tradutores: Lauro Antonio e Maria Eduarda Colares. Lisboa: Dinalivros, 2005.

 

REBELO, Rudi. O Herói de Zezé Gamboa, espelho político de uma Angola pós-guerra.

https://nossaavenida.wordpress.com/2014/11/03/o-heroi-de-zeze-gamboa-espelho-politico-social-de-uma-angola-pos-guerra/. Acessado: 31/01/2018.

 

SABINE, Mark. Reconstruindo o corpo político de angola – projeções globais e locais da identidade e protesto em O herói. In: BAMBA, Mahomed; MELEIRO, Alessandra (Orgs.). Filmes da África e da diáspora – objetos de discursos. Salvador: EdUFBA/FAPESP, 2012.

 

SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. 5. ed. São Paulo: EdUSP, 2012.

 

XAVIER, Ismael. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

 

Filmografia:

 

GAMBOA, Zezé. O herói. 2004. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4Wlh76KcCjA. Acessado em: 06 maio 2017.

 

Discografia:

FLORES, Paulo. Recompasso. Luanda Go Edições e Pr

 

[1] Ana Lidia da Silva Afonso, natural do Rio de Janeiro, graduou-se e se licenciou em Letras, Português-Literaturas, pela Faculdade de Formação de Professores – FFP da UERJ. Especializou-se em Literaturas e Culturas de Língua Portuguesa: Portugal e África e, a seguir, realizou Mestrado em Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas, ambos pela UFF. É doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, Literaturas Portuguesa e Africanas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

 

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